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CAPÍTULO 4 - HABEAS CORPUS NAS TRANSGRESSÕES DISCIPLINARES

4.5. É NECESSÁRIO ESGOTAR AS VIAS ADMINISTRATIVAS PARA SOMENTE APÓS IMPETRAR HABEAS CORPUS?

 

Esse é um tema importante e interessante que, inclusive, foi objeto de impetração de habeas corpus por mim quando militar, pois fui punido por ter impetrado um habeas corpus contra prisão ilegal sem antes esgotar as vias administrativas.

A Lei nº 6.880/1980 é norma infraconstitucional e foi elaborada na vigência da Ditadura Militar, ou seja, antes da CF/88, logo, a princípio, está passível de conter normas conflitantes com a nova Ordem Democrática.

Pode-se citar, como exemplo de incompatibilidade, o antigo § 3º do art. 51 da Lei nº 6.880/1980, que foi revogado pela Lei nº 13.954/2019, haja vista o fato de que exigia o esgotamento da esfera administrativa para que o militar reivindicasse direitos ao Poder Judiciário, conforme se depreende da leitura do revogado § 3º:

 

Art. 51. O militar que se julgar prejudicado ou ofendido por qualquer ato administrativo ou disciplinar de superior hierárquico poderá recorrer ou interpor pedido de reconsideração, queixa ou representação, segundo regulamentação específica de cada Força Armada.

(...)

§ 3º O militar só poderá recorrer ao Judiciário após esgotados todos os recursos administrativos e deverá participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado.

 

Ressalte-se que a Lei nº 13.954/2019 foi de iniciativa do Poder Executivo e, certamente, agiu corretamente e é merecedor de aplausos por ter revogado o § 3º do art. 51 da Lei nº 6.880/1980, pois assim, todos os militares das Forças Armadas não terão mais receio de ajuizar demandas judiciais sem antes esgotar a esfera administrativa.

Com a revogação desse § 3º, o militar esgotará a esfera administrativa se quiser, posto que poderá ajuizar, por exemplo, ação judicial para requerer sua promoção na carreira após ter sido excluído do Quadro de Acesso, não havendo necessidade de prévio esgotamento da esfera administrativa para ajuizar essa demanda judicial.

Da mesma forma ocorre com o habeas corpus contra a punição disciplinar, pois não será necessário que o militar esgote a esfera administrativa (pedido de reconsideração e recursos administrativos) para somente após impetrar esse writ perante o Poder Judiciário.

A Lei nº 7.289/1984 (Estatuto dos Policiais Militares do Distrito Federal) possui impedimento1 semelhante e que, por coincidência, também é o § 3º do art. 51, sendo que, no entanto, ainda está em vigor:

 

Art. 51. O policial-militar, que se julgar prejudicado ou ofendido por qualquer ato administrativo ou disciplinar de superior hierárquico, poderá recorrer ou interpor pedido de reconsideração, queixa ou representação, segundo o regulamento específico ou peculiar.

(...)

§ 3º O policial-militar só poderá recorrer ao judiciário após esgotados todos os recursos administrativos e deverá participar esta providência, antecipadamente, à autoridade a qual estiver subordinado.

 

Agora vejamos o inciso XXXV do art. 5º da CF/88:

 

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

 

A jurisprudência majoritária já havia pacificado, muito antes da revogação do § 3º do art. 51 da Lei nº 6.880/80 pela Lei nº 13.954/2019, que esse parágrafo não havia sido recepcionado pela CF/88, podendo-se destacar a seguinte decisão do ano de 1998:

 

DIREITO ADMINISTRATIVO. ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. MILITAR PUNIDO COM PENA DE PRISÃO POR TER IMPETRADO MANDANDO DE SEGURANÇA PARA DEFESA DE SEUS DIREITOS. 1. O Dec-90608/84, item 15 do Anexo 1, ao estabelecer que caracteriza infração disciplinar " recorrer ao judiciário sem antes esgotar todos os recursos administrativos " e o ART-51, PAR-3, do Estatuto dos Militares ( LEI-6880/80 ), ao enunciar que " o militar só poderá recorrer ao judiciário após esgotados todos os recursos administrativos e deverá participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado ", não foram recepcionados pela Magna Carta de 1988, onde é assegurado o direito de acesso ao judiciário, sem a necessidade de esgotar previamente a via administrativa. (TRF4 - REO – REEX nº 94.04.39311-8 – 3ª Turma - Relatora Desembargadora Luiza Dis Cassales – DJ de 30.09.1998)

 

Inclusive, após vários questionamentos perante o Poder Judiciário, devido à inconstitucionalidade (não recepção) do antigo § 3º do art. 51 da Lei nº 6.880/1980, o Ministério da Defesa decidiu, no ano de 2005, a não mais exigir o prévio esgotamento da esfera administrativa.

A Assessoria Jurídica do Ministério da Defesa emitiu o Parecer 121/CONJUR-20052, onde após aprovação pelo à época Vice-Presidente da República - José Alencar – passou a ter força vinculativa nas Forças Armadas, conforme se observa na leitura das alíneas b e c do item 28:

 

28. Assim, os Comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica quando cientificados de que um dos seus militares ingressou no Judiciário questionando ato, negócio ou qualquer outra relação jurídica, administrativa ou de qualquer outra natureza, estarão sujeitos a:

a) reconhecer que o § 3º do art. 51 do Estatuto dos Militares não mais vigora, pois a nova ordem jurídica trazida pela Constituição Federal de 1988 não lhe confere validade, nem lhe recebeu, restando o texto abaixo como se não escrito fosse no Estatuto:

§ 3º O militar só poderá recorrer ao Judiciário após esgotados todos os
recursos administrativos e deverá participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado. (Lei nº 6.880 de 10 de dezembro de 1980)

b) absterem-se de aplicar qualquer sanção disciplinar fundada, direta ou indiretamente, no supracitado dispositivo do item 01, em combinação ou não com os Estatutos disciplinares das Forças, seja em função do não esgotamento dos recursos administrativos a serem julgados pelas Forças, seja em função da não comunicação prévia de medida judicial;

 

Assim, conclui-se que não há necessidade de esgotar a esfera administrativa3 para somente após impetrar habeas corpus contra punição disciplinar inconstitucional e/ou ilegal.

 

 

_______________________________

1ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CARREIRA MILITAR. DISCRICIONARIEDADE. ARBITRARIEDADE. DISTINÇÃO. REPRESÁLIA A DECISÃO JUDICIAL. 1. Desnecessário a qualquer cidadão, na defesa de seus direitos, esgotar a via administrativa, ainda mais quando os ditos direitos continuem sendo malferidos de forma ilegal e abusiva, correndo riscos de perseguições, humilhações e toda sorte de pressões para não ingressar na Justiça. 2. A "disponibilidade" no meio militar é considerada a UTI entre a vida e a morte na caserna. É uma das mais humilhantes punições que um Oficial Superior pode receber. É o prenúncio do fim da carreira. Caracterizado que a medida, de caráter indisfarçavelmente punitivo, traduziu efetiva represália a uma decisão judicial, materializa-se na espécie a ilegalidade, o excesso de poder e o desvio de finalidade a viciar o ato administrativo. 3. A harmonia prevista na Constituição Federal, como regra de convivência entre os Poderes, não significa a obediência aos caprichos de algum Rei-Sol, mas à vontade da Lei, cuja interpretação foi outorgada, em caráter definitivo, ao Poder Judiciário. 4. Não há possibilidade de confronto real entre o ingresso em juízo e os valores relativos à disciplina e hierarquia, pois que constitucional a garantia de acesso ao Judiciário. Desse modo, as exonerações naquele fato alicerçadas têm como respaldo apenas insana retaliação, o que implica em classificar-se o ato como arbitrário e, por isso, ilegal. 5. O ato discricionário tem por base o interesse público, que não se confunde com interesses subjetivos ou de política subalterna de autoridades ou de seus correligionários, réus em ação popular intentada pelos impetrantes. Apelo improvido. Unânime. (TJDFT - Acórdão nº100072 - APC4037996 – 1ª Turma Cível - Relator Desembargador Valter Xavier - DJU de 19.11.1997)

2DECISÃO ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL– PEDIDO LIMINAR – ANALOGIA – ARTIGO 12 DA LEI Nº 9.868/1999. 1. O Gabinete prestou a seguintes informações: A Procuradoria Geral da República formalizou, com pedido de concessão de liminar, arguição de descumprimento de preceito fundamental em face do artigo 51, § 3º, da Lei nº 6.880, de 1980 – Estatuto dos Militares. O preceito impugnado estabelece como requisitos para o ajuizamento de ação judicial pelo militar o esgotamento prévio da esfera administrativa e a comunicação antecipada ao superior hierárquico. O ministro Gilmar Mendes, no exercício da Presidência, observou o artigo 5º, § 2º, da Lei nº 9.882, de 1999, solicitando informações. A Presidência da República e a Advocacia-Geral da União informam a edição do Parecer nº 121/CONJUR-2005, da Consultoria Jurídica do Ministério da Defesa, aprovado em caráter normativo pelo respectivo Ministro de Estado. Com isso, a norma questionada deixou de ser aplicada aos membros das Forças Armadas, ante a conclusão administrativa de ausência de compatibilidade entre o dispositivo e o princípio da inafastabilidade de acesso à jurisdição. 2. Tem-se admitido que algumas regras versadas na Lei nº 9.868, de 1999, a qual dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, sejam aplicadas analogicamente ao procedimento previsto para a arguição de descumprimento fundamental. Na espécie, a racionalidade e a organicidade próprias ao Direito direcionam ao julgamento definitivo, no que se homenageia a economia processual. 3. Aciono o disposto no artigo 12 da Lei nº 9.868, de 1999. Providenciem as informações, a manifestação do Advogado-Geral da União e o parecer da Procuradoria Geral da República sobre o mérito do pedido formulado. 4. Publiquem. Brasília, 11 de junho de 2012. Ministro MARCO AURÉLIO Relator. (STF – ADPF nº 181- Relator Ministro Marco Aurélio – DJe de 21.06.2012)

3Da mesma forma, obviamente, não é necessário informar previamente à autoridade superior que será impetrado um habeas corpus, ou mesmo que ajuizará qualquer outro tipo de ação judicial para reivindicar quaisquer direitos, como por exemplo, ação de reforma por incapacidade definitiva para o serviço militar.

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