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CAPÍTULO 4 - HABEAS CORPUS NAS TRANSGRESSÕES DISCIPLINARES

4.1 CONCEITUAÇÃO DE TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR

 

Primeiramente, não há de se confundir transgressão disciplinar1 com crime militar2, pois são delitos distintos, sendo possível, obviamente, a utilização do habeas corpus em ambos, desde que presente ilegalidade ou abuso de poder.

Célio Lobão3, após discorrer sobre teorias nacionais e estrangeiras, concluiu que o crime militar pode ser assim conceituado:

 

Nessa linha de raciocínio, em face do direito positivo brasileiro, o crime militar é a infração penal prevista na lei penal militar que lesiona bens ou interesses vinculados à destinação constitucional das instituições militares, às suas atribuições legais, ao seu funcionamento, à sua própria existência, no aspecto particular da disciplina, da hierarquia, da proteção à autoridade militar e ao serviço militar.

 

Muitos acreditam que somente o militar poderá cometer delitos penais militares, o que não é verdade, pois há crimes militares que poderão ser cometidos4 por civis5, conforme se pode verificar com a leitura do CPM.

As transgressões disciplinares estão normatizadas nos regulamentos militares6 das Forças Armadas e das Polícias Militares, podendo-se utilizar a conceituação fornecida pelo art. 14 do Decreto nº 4.346/2002 (RDE):

 

Art. 14. Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe.

§ 1º Quando a conduta praticada estiver tipificada em lei como crime ou contravenção penal, não se caracterizará transgressão disciplinar.

(…)

 

O § 1º faz uma importante ressalva, onde esclarece que se a transgressão estiver também tipificada como crime ou contravenção penal, não estará caracterizado a falta disciplinar, mas sim o crime ou a contravenção.

Inclusive, não é raro o descumprimento desse parágrafo por autoridades militares, já tendo sido, inclusive, motivo de recomendação pelo MPM, destacando-se a Recomendação nº 02/20207 da Procuradoria de Justiça Militar em Curitiba/PR que, dentre outras, fez a seguinte consideração:

 

CONSIDERANDO que a legislação administrativa castrense é clara ao estabelecer que no concurso de crime militar e de contravenção ou transgressão disciplinar, quando forem da mesma natureza, será aplicada somente a pena relativa ao crime (arts. 42 e 46 da Lei nº 6.880/1980) e quando a conduta praticada estiver tipificada em lei como crime ou contravenção penal, não se caracterizará transgressão disciplinar (art. 14, § § 1º e 4º, Decreto nº 4346/2002).

 

Vejamos um exemplo do próprio regulamento disciplinar do Exército, que no caso é o inciso 12 do anexo I (Relação de Transgressões):

 

12. Desrespeitar, retardar ou prejudicar medidas de cumprimento ou ações de ordem judicial, administrativa ou policial, ou para isso concorrer;

 

Agora vejamos o art. 330 do CP:

 

Desobediência

Art. 330. Desobedecer8 a ordem legal de funcionário público:

Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, e multa.

 

Dessa forma, se o militar, por exemplo, descumprir uma ordem judicial9, praticará, em tese, o delito penal previsto no art. 330 e não transgressão disciplinar.

__________________________

1A transgressão disciplinar é um delito administrativo.

2Crime Militar é o delito penal especial definido no Código Penal Militar de 1969. (Elaborado pelos Ministros da Aeronáutica, Exército e Marinha em pleno auge máximo da Ditadura Militar, assim como seu Código de Processo Penal Militar, sendo um Código muito severo).

3LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. 3ª ed. Brasília: Brasília Jurídica , 2006. p. 56.

4HABEAS CORPUS. ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO. ACUSADA CIVIL. PREJUÍZO DA ADMINISTRAÇÃO DO EXÉRCITO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. JULGAMENTO RESTRITO AO JUIZ TOGADO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. WRIT CONHECIDO. DENEGAÇÃO DA ORDEM. O estelionato previdenciário, praticado por civis contra os Órgãos Pagadores das Forças Armadas, tem sua tipicidade prevista no art. 9º, incisos III, alínea "a", e art. 251, ambos do CPM. O bem jurídico tutelado é o patrimônio sob Administração Militar. O legislador não impôs a exigência da qualidade de agente do delito, podendo ser o crime praticado por militar ou civil. Não obstante a pendência de julgamento de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (HC nº 112.848), o art. 27, inciso II, da Lei nº 8.457, de 4/9/1992, encontra-se vigente e em harmonia com o art. 124, parágrafo único, da Constituição Federal, o qual confere à lei ordinária dispor sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar da União. Ademais, o art. 9º, inciso III, alínea "a", do CPM, é claro quanto à possibilidade do julgamento de civis neste ramo específico do Poder Judiciário." Habeas corpus conhecido, porém denegado por falta de amparo legal. Decisão por maioria. (STM – HC n° 0000078-11.2017.7.00.0000/RJ - Relator Ministro William de Oliveira Barros – DJe de 24.05.2017)

5Não me aprofundarei sobre os crimes militares cometidos por civis, pois foge ao objetivo deste livro.

6Marinha: Decreto nº 88.545/83 - Exército: Decreto nº 4.346/02 - Aeronáutica: Decreto nº 76.322/75.

7A íntegra dessa Recomendação está no banco de legislação do livro online.

8Enunciado nº 61-2ª CCR do MPF: Para a configuração do crime de desobediência, além do descumprimento de ordem legal de funcionário público, é necessário que não haja previsão de sanção de natureza civil, processual civil e administrativa, e que o destinatário da ordem seja advertido de que o seu não cumprimento caracteriza crime. (Aprovado na 108ª Sessão de Coordenação, de 07.03.2016).

9CRIMINAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DELITO DE DESOBEDIÊNCIA. ORDEM EMANADA DE JUÍZO ESTADUAL. MILITAR QUE NÃO ESTAVA DESEMPENHANDO FUNÇÃO MILITAR. FUNCIONÁRIO PÚBLICO FEDERAL NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. I. Tratando-se, em princípio, de delito de desobediência à ordem judicial possivelmente praticado por funcionário público federal no exercício de suas funções e com estas relacionado, sobressai a competência da Justiça Federal para o seu processo e julgamento. II. In casu, o Coronel não estava desempenhando função militar, mas agindo na condição de funcionário público federal e no interesse do patrimônio da União. III. A natureza militar do delito, nos termos do art. 9º, inc. II, alíneas b e c, do CPM, só se evidencia na hipótese de delito de desobediência à decisão emanada da Justiça Militar, sendo que, in casu, configura-se, em princípio, o delito previsto no art. 22, parágrafo único, da Lei nº 5.478/68. IV. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 2ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul, o Suscitado. (STJ - CC n° 28.573/RS – 3ª Turma - Relator Ministro Gilson Dipp GILSON DIPP - DJ de 30.10.2000)

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