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CAPÍTULO 4 - HABEAS CORPUS NAS TRANSGRESSÕES DISCIPLINARES

4.9.2. QUEM É A AUTORIDADE COATORA NO HABEAS CORPUS?

 

Muitas vezes, leigos, e até mesmo Advogados costumam identificar erroneamente1 a autoridade coatora, pois dependendo da situação poderá haver dificuldades sobre quem de fato e de direito seja a autoridade coatora na petição de habeas corpus.

Na petição de habeas corpus, a autoridade coatora é chamada de impetrado(a), e nada mais é do que a autoridade que está exercendo ilegalmente ou com abuso de poder a violência, a coação ou ameaça da liberdade de ir e vir.

Alexandre de Moraes2 assim discorre sobre a legitimidade passiva no writ:

 

O habeas corpus deverá ser impetrado contra o ato do coator, que poderá ser tanto autoridade (delegado de polícia, promotor de justiça, juiz de direito, tribunal, etc) como particular. No primeiro caso, nas hipóteses de ilegalidade e abuso de poder, enquanto no segundo caso, somente nas hipóteses de ilegalidade. Por óbvio, na maior parte das vezes, a ameaça ou coação à liberdade de locomoção por parte de particular constituirá crime previsto na legislação penal, bastando a intervenção policial para fazê-la cessar. Isso, porém, não impede a impetração do habeas corpus, mesmo porque existirão casos em que será difícil ou impossível a intervenção da polícia para fazer cessar a coação ilegal (internações em hospitais, clínicas psiquiátricas).

 

Na seara administrativa disciplinar, a autoridade coatora será sempre um militar, haja vista que os processos administrativos sobre transgressões disciplinares são processados e julgados por autoridades militares.

Mas como identificar a autoridade coatora militar? Será o militar (Oficial) que está investigando (processando e julgando) o fato cometido pelo subordinado? Ou será o chefe imediato? Ou será o Comandante da Unidade Militar? Ou será o Comandante de uma Força Armada? Sem dúvidas, o leigo poderá ter dificuldades em identificar a autoridade coatora, entretanto, pode-se identificar com a resposta à seguinte pergunta: qual autoridade tem poder para cancelar a punição disciplinar?

E, ainda, importante destacar que, em regra, o processamento e julgamento de processos disciplinares são delegados aos Oficiais subordinados ao Comandante de uma Organização Militar.

Exemplificando: um Sargento comete uma transgressão disciplinar dentro de uma Base Aérea, comandada por um Coronel, sendo que àquele exerce suas funções no Almoxarifado. Ocorre, em regra, que será o chefe imediato deste militar, um Tenente, por exemplo, que notificará (na verdade ele estará exercendo uma função delegada pelo comandante da unidade militar, ou seja, quem por direito pune é o comandante) o militar sobre a instauração do processo disciplinar, ouvirá seu depoimento e das testemunhas, etc, e ao final, considerando que houve transgressão disciplinar, irá proferir seu “parecer”, no sentido de, por exemplo, concluir que o militar praticou transgressão disciplinar e que por isso deve cumprir detenção ou prisão3. Se a autoridade militar delegante (Coronel) concordar com o “parecer” do Tenente, bastará “homologar” e ordenar a execução da punição disciplinar com sua publicação em boletim interno.

Nesse exemplo, se a punição disciplinar for ilegal, a autoridade coatora não será o Tenente, pois este não poderá cancelar a punição, mas sim o Comandante da Base Aérea, pois somente este detém competência para cancelá-la.

Todavia, eu, particularmente4, considero adequado que sejam indicadas como autoridades coatoras tanto o Comandante da Unidade Militar quanto o Oficial que processou e julgou o processo disciplinar. Não há nenhum problema nisso, ocorrerá que o magistrado definirá quem é a autoridade coatora, inclusive, eu mesmo fiz isto algumas vezes e nunca tive problemas no processamento e julgamento dos writs. Logo, na dúvida, coloque como autoridades coatoras a maior autoridade de sua Organização Militar e aquela que o notificou e realizou todos os trâmites no processo administrativo disciplinar.

Às vezes, o próprio regulamento militar interno da Força Armada ou Auxiliar esclarecerá, facilmente, quem é a autoridade coatora, podendo-se citar a ICA 111-6/2021 da Aeronáutica, que fez a distinção entre o Oficial “apurador” e o Oficial “instaurador e julgador” que aplicará a punição disciplinar, conforme se verifica nos seguintes dispositivos normativos:

 

3.1 A abertura do processo de apuração de transgressão disciplinar (PATD) será determinada pela autoridade competente para aplicar punição, por meio de despacho de abertura (Anexo B), independentemente de publicação, no qual designará o oficial apurador, encaminhando-lhe a documentação com o relato dos fatos.

 

5.1.7 O oficial apurador emitirá o relatório do PATD (Anexo I), no prazo de até cinco dias úteis contados do primeiro dia útil subsequente, após a entrega ou transcurso do prazo consignado par apresentação da defesa do militar arrolado, desde que não seja necessária a produção de outra provas para esclarecimento dos fatos.

 

5.1.10 No relatório do apurador deverá constar:

a) um breve relato dos fatos e do PATD;

b) o parecer quanto à procedência ou improcedência dos fatos imputados e das alegações de defesa, analisando os documentos que compõem os autos;

c) o parecer quanto às circunstâncias justificativas, se houver;

d) a apreciação das circunstâncias atenuantes e agravantes, se houver;

e) a classificação da transgressão, segundo arts. 11 e 12, do RDAER;

f) a proposta de punição disciplinar a ser imposta, se for o caso; e

g) as referências legislativas aplicadas ao caso, em conformidade ao RDAer.

 

5.1.12 A autoridade que aplica a punição disciplinar analisará as considerações decorrentes da apuração da suposta transgressão disciplinar, podendo concordar ou discordar da sugestão apresentada pelo apurador. Em sua decisão deverá constar o julgamento quanto à procedência ou improcedência das acusações e das alegações de defesa, apontando-se a punição disciplinar a ser imposta, se for o caso.

 

5.1.13 A autoridade que aplica a punição disciplinar poderá ampliar o prazo previsto no item 5.1.11, mediante decisão fundamentada, fixando prazo razoável para tomada de decisão.

 

No item nº 3.3 dessa ICA, também está normatizado que o Oficial “apurador” não poderá ser o Oficial “instaurador e julgador”:

 

3.3 Em um mesmo PATD, aquele que apurar a transgressão cometida não poderá atuar como autoridade para aplicar a punição disciplinar, ainda que investido das duas competências por designação do Comandante da OM, a fim de garantir a imparcialidade e isenção na condução do processo.

Aproveitando o tema e a fim de esclarecer aos militares da Aeronáutica sobre a possibilidade ou não de o Oficial inativo em PTCC (Prestação de Tarefa por Tempo Certo) participar do PATD (Processo de Apuração de Transgressão Disciplinar), transcrevo o item nº 2.5 dessa ICA com a respectiva resposta:

 

2.5 Desde que expressamente previsto no contrato do Prestador de Tarefa por Tempo Certo (PTTC), o oficial PTTC poderá apurar transgressões disciplinares, não podendo aplicar punições.

A regra, resumidamente, é a seguinte para se definir, a princípio, quem é a autoridade coatora no habeas corpus: a autoridade coatora será aquela que, pelos regulamentos disciplinares, detém o poder de impor a punição disciplinar e, se for o caso, de cancelá-la.

O art. 10 do Regulamento Disciplinar do Exército (RDE5), o art. 42 do RDAER e o art. 19 do RDM enumeram as autoridades competentes para a aplicação da punição disciplinar. Assim, essas, em regra, serão as autoridades coatoras (impetradas) nos habeas corpus em caso de punições disciplinares ilegais impostas aos militares das Forças Armadas.

Vejamos o art. 42 do RDAER, a fim de melhor visualização da autoridade coatora em potencial no writ constitucional:

 

Art. 42. Tem competência para aplicar punições disciplinares:

1 - A todos os que estão sujeitos a este regulamento:

a) o Presidente da República;

b) o Ministro da Aeronáutica.

2 - A todos os que servirem sob seus respectivos comandos ou forem subordinados funcionalmente:

a) os Oficiais-Generais em função;

b) os Oficiais Comandantes de Organização;

c) os Chefes de Estado-Maior;

d) os Chefes de Gabinete;

e) os Oficiais Comandantes de Destacamento, Grupamento e Núcleo;

f) os Oficiais Comandantes de Grupo, Esquadrão e Esquadrilha.

3 - Os Chefes de Divisão e Seção administrativas ou outros órgãos, responsáveis pela administração de pessoal, quando especificamente previsto no Regulamento ou Regimento Interno da Organização.

Parágrafo único. O Quadro Anexo II especifica a punição máxima que pode ser aplicada pelas autoridades referidas neste artigo.

 

Todavia, mesmo que a autoridade coatora seja indicada erroneamente, é possível6 que o habeas corpus seja processado e julgado, caso seja possível ao magistrado, com base nos fatos e/ou documentos juntados7 à inicial do writ, identificar a autoridade coatora, conforme se depreende da seguinte decisão do STM:

 

HABEAS CORPUS. IPM. TRANCAMENTO. FATOS JÁ APURADOS EM OUTRO PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO. AUSÊNCIA DE FATOS NOVOS. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DE PARTE. AUTORIDADE COATORA IMPROPRIAMENTE INDICADA. Somente em casos especialíssimos se procede a trancamento de IPM através de "habeas corpus". Constitui evidente constrangimento ilegal submeter alguém novamente à condição de indiciado, em razão dos mesmos fatos já apurados e esclarecidos em outro IPM, que já foi alvo de manifestação judicial, sem a ocorrência de fatos novos. A ação penal militar é publica por excelência (art. 29, do CPM) e, por tal razão não prescinde de representação do ofendido, mesmo nos crimes contra a honra. Na ação declaratória de "habeas corpus" a indicação equivocada da autoridade coatora pelo Impetrante não impede o conhecimento da causa se, pelos documentos instrutórios, o juiz identifica quem está praticando a suposta coação. Ordem concedida. Decisão majoritária. (STM – HC nº 2000.01.033560-9/RJ – Rel. Min. João Felippe Sampaio de Lacerda Júnior - DJ de 24.10.2000)

 

Na decisão acima consta a frase preliminar de ilegitimidade de parte, que é tecnicamente, em síntese, um pedido da autoridade coatora para que o habeas corpus não seja conhecido, e assim não seja julgado, sob a alegação de que não foi indicada corretamente a autoridade coatora pelo impetrante. E, nesse caso concreto, o Tribunal Militar rejeitou essa preliminar em virtude de que foi possível identificar a autoridade coatora nos autos do habeas corpus e, por isso, foi concedido o writ para cessar a ilegalidade da constrição da liberdade do militar.

Importante, ainda, tecer comentários sobre o princípio da encampação, também utilizado em sede de habeas corpus. Ocorre a aplicação desse princípio quando a autoridade coatora é erroneamente identificada, porém, devido ao fato de a mesma ser superior à erroneamente identificada e prestar8 as informações requeridas pelo magistrado, ou seja, defender-se do habeas corpus, acaba por ratificar a ilegalidade praticada pelo subordinado (autoridade coatora identificada erroneamente pelo impetrante), e assim fazendo, passará (encampação – ratificação da punição ilegal), também, à condição de autoridade coatora.

Vejamos uma decisão do STJ sobre o princípio da encampação em sede de mandado de segurança, que pode, certamente, ser utilizada como exemplo para o habeas corpus:

 

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. AUTORIDADE IMPETRADA. INDICAÇÃO DE LEGITIMAÇÃO DO INFERIOR HIERÁRQUICO. ATAQUE AO ATO IMPUGNADO. ENCAMPAÇÃO DA LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. PRECEDENTES. 1. Recurso ordinário em mandado de segurança oposto contra acórdão que extinguiu writ ante o reconhecimento da ilegitimidade passiva ad causam da autoridade coatora. 2. Pacificou-se de forma contundente nesta Corte Superior o entendimento de que se a autoridade, indicada como coatora, em suas informações, encampa o ato atacado na impetração praticado por autoridade de hierarquia inferior, a ela subordinado, e contesta o mérito da impetração, embora não o tenha praticado, passa a ter legitimidade para a causa, com o consequente deslocamento da competência. Inaplicabilidade do art. 267, VI, do CPC. 3. Precedentes das egrégias 1ª e 3ª Seção, e 1ª, 2ª, 5ª e 6ª Turmas desta Corte Superior. 4. Recurso provido. Baixa dos autos ao egrégio Tribunal de origem para que prossiga no julgamento da ação, com o exame das demais questões. (STJ – ROMS nº 20422/RN – Primeira Turma – Relator Ministro José Delgado – DJ de 10.10.2005)

 

Assim, restou esclarecido quem deverá figurar como autoridade coatora no polo passivo da ação constitucional de habeas corpus.

___________________________

1HABEAS CORPUS. JUSTIÇA MILITAR. ERRO NA INDICAÇÃO DA AUTORIDADE COATORA. 1. Se o erro na indicação da autoridade coatora em habeas corpus impetrado na Justiça Militar é passível de correção, não se justifica a falta da prestação jurisdicional. 2. Habeas corpus deferido de ofício. (STF - HC nº 77.857 – 2ª Turma – Relator Ministro Maurício Corrêa - MAURÍCIO CORRÊA - DJ de 07.05.1999)

2MORAES. Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 144.

3Há regulamentos, como da Aeronáutica, prevendo que a primeira prisão de militar deverá ser decretada pelo Comandante da Organização Militar.

4Tal dificuldade poderá ser enfrentada pelo próprio magistrado, pois oportuno ressaltar, que é possível que um magistrado em início de carreira não conheça adequadamente a utilização do writ nas punições administrativas disciplinares. E isso já aconteceu comigo: em 2004, um Juiz Federal entendeu que não era cabível o writ para questionar punição disciplinar, embora o STF já conheça do writ nas transgressões há muito tempo atrás.

5HABEAS CORPUS - PROCESSO ADMINISTRATIVO - SERVIDOR PÚBLICO MILITAR - CERCEAMENTO AO DIREITO DE DEFESA - DECRETO Nº 4.346/02 - CONSTITUCIONALIDADE - IMPROVIMENTO À REMESSA OFICIAL E AO RECURSO VOLUNTÁRIO. 1. A Constituição Federal de 1988 assegura ao indivíduo, no processo judicial e administrativo, o devido processo legal. 2. Consiste em violação ao princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, o ato do sindicante que, em sede de processo administrativo militar, indefere indevidamente a oitiva de testemunhas arroladas pelo paciente. 3. O Decreto-Lei nº 4.4346/2002 é constitucional em razão de inexistência de vício formal consoante o resultado do julgamento da ADI 3340/DF, eis que ao referido decreto compete tão somente de especificar as transgressões militares. 4. Recurso e remessa oficial desprovidos. (TRF3 - RSE nº 00134987920114036105 – 5ª Turma - Juiz Federal convocado Rafael Margalho - e-DJF3 de 12.06.2012)

REEXAME NECESSÁRIO. MILITAR. PRISÃO DISCIPLINAR. DECRETO 4.346/02. CONSTITUCIONALIDADE. - "O Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto nº 4.346/02) não fere o princípio da reserva legal porque está amparado em lei no sentido formal e limita-se a especificar as sanções previstas para as transgressões disciplinares estabelecidas pela Lei nº 6.880/80" (HC nº 2009.04.00.000029-5/PR, rel. Des. Federal Amaury Chaves de Atahyde, D.E., ed. 28-05-2009). - "Tem-se, portanto, a possibilidade de punição administrativa por transgressões disciplinares, prevista no Estatuto dos Militares, regulamentada pelo Decreto n.º 4.346/2002, com o fim de preservar a hierarquia e a disciplina nas Forças Armadas. Inexiste ofensa à Constituição Federal ou à Lei. A medida constritiva, do ponto de vista formal, está em consonância com o Ordenamento Jurídico pátrio" (STJ, MS nº 9.710/DF, 3ª Seção, relª. Minª. Laurita Vaz, DJU, ed. 06-09-2004). (TRF4 - REOCR nº 200971000042970 – 8ª Turma - Relator Desembargador Federal Luiz Fernando Wowk Penteado - D.E. de 20.01.2010)

6O magistrado não está obrigado a “consertar” o erro do impetrante quanto à identificação da autoridade coatora no writ, todavia, poderá intimar o impetrante para o fim de emendar a inicial, a fim de corrigir o polo passivo do writ, ou seja, informar quem é a correta autoridade coatora.

7Junte a notificação da instauração do processo disciplinar ou mesmo cópia de todo o processo, caso já tenha sido concluído. Não se surpreendam se a autoridade militar de sua OM se negar a fornecer cópias do processo disciplinar (isso é ilegal, ou melhor, inconstitucional). Porém, se isso ocorrer, deverá ser informado na petição do habeas corpus. E é adequado que faça o pedido administrativo por escrito (em 2 vias) de cópias do processo disciplinar e peça para que uma cópia seja assinada ou protocolada no quartel, conforme for o caso, e após junte tal cópia à inicial do writ e solicite ao magistrado que intime a autoridade coatora para que a mesma entregue as referidas cópias em juízo. Esse procedimento fará com que o magistrado saiba que você requereu as cópias do processo disciplinar e que a autoridade coatora, a princípio, negou-lhe um direito constitucional, e isso, certamente, irá influenciar em seu favor perante o magistrado.

8Se a autoridade coatora apontada erroneamente na petição do habeas corpus não pretender que seja aplicado o princípio da encampação, deverá arguir nas informações (defesa escrita) somente sua ilegitimidade passiva no writ, não adentrando no mérito da prisão ou detenção do paciente.

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