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CAPÍTULO 16 - HIERARQUIA DAS NORMAS JURÍDICAS NA ADMINISTRAÇÃO MILITAR: BREVES APONTAMENTOS
16.2. DECRETO REGULAMENTAR E DECRETO AUTÔNOMO
Os incisos IV e VI do art. 84 da CF/88 dispõem sobre a competência privativa do Chefe do Executivo Federal para expedir decretos, regulamentos e decretos autônomos:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(….)
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
(...)
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;
(...)
Vejamos as seguintes conceituações de decreto e de decreto regulamentar extraídos do Manual1 de Redação da Presidência da República:
Decretos são atos administrativos da competência exclusiva do Chefe do Executivo, destinados a prover situações gerais ou individuais, abstratamente previstas, de modo expresso ou implícito, na lei. Esta é a definição clássica, a qual, no entanto, é inaplicável aos decretos autônomos, tratados adiante.
Os decretos regulamentares são atos normativos subordinados ou secundários. A diferença entre a lei e o regulamento, no Direito brasileiro, não se limita à origem ou à supremacia daquela sobre este. A distinção substancial reside no fato de que a lei inova originariamente o ordenamento jurídico, enquanto o regulamento não o altera, mas fixa, tão-somente, as “regras orgânicas e processuais destinadas a pôr em execução os princípios institucionais estabelecidos por lei, ou para desenvolver os preceitos constantes da lei, expressos ou implícitos, dentro da órbita por ela circunscrita, isto é, as diretrizes, em pormenor, por ela determinadas” Não se pode negar que, como observa Celso Antônio Bandeira de Mello2, a generalidade e o caráter abstrato da lei permitem particularizações gradativas quando não têm como fim a especificidade de situações insuscetíveis de redução a um padrão qualquer. Disso resulta, não raras vezes, margem de discrição administrativa a ser exercida na aplicação da lei. Não se há de confundir, porém, a discricionariedade administrativa, atinente ao exercício do poder regulamentar, com delegação disfarçada de poder. Na discricionariedade, a lei estabelece previamente o direito ou dever, a obrigação ou a restrição, fixando os requisitos de seu surgimento e os elementos de identificação dos destinatários. Na delegação, ao revés, não se identificam, na norma regulamentada, o direito, a obrigação ou a limitação. Estes são estabelecidos apenas no regulamento.
Celso Antônio Bandeira de Mello3 assim conceitua o regulamento:
2. Nossa Constituição – tal como as que a precederam ao longo da história republicana – oferece elementos bastante suficientes para caracterizar o regulamento e delimitar-lhe as virtualidades normativas. Como logo ao diante se verá, segundo o que deles resulta, pode-se conceituar o regulamento em nosso Direito como ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública. É que os dispositivos constitucionais caracterizadores do princípio da legalidade no Brasil impõem ao regulamento o caráter que se lhe assinalou, qual seja, o de ato estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno e, ademais, dependente de lei. Logo, entre nos, só podem existir regulamentos conhecidos no Direito alienígena como “regulamentos executivos”. Daí que, em nosso sistema, de direito, a função do regulamento é muito modesta.
Em relação ao decreto e regulamento (ambos de execução4) mencionados no inciso IV, objetivando a execução fiel das leis5, não é legal6 que os mesmos contrariem e/ou extrapolem as regras previstas nas respectivas leis, conforme já decidido pelo STJ em 2008:
DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. POLICIAL MILITAR DO ESTADO DE SANTA CATARINA. INDENIZAÇÃO DE ESTÍMULO OPERACIONAL. ALTERAÇÃO DA FORMA DE CÁLCULO DA PARCELA POR DECRETO. ILEGALIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. O decreto, como norma secundária – que tem função eminentemente regulamentar, conforme o art. 84, inc. IV, da Constituição Federal –, não pode contrariar ou extrapolar a lei, norma primária. Não pode restringir os direitos nela preconizados. Isso porque tão-somente a lei, em caráter inicial, tem o poder de inovar no ordenamento jurídico. 2. Os Decretos Estaduais 2.697/04 e 2.815/04 modificaram substancialmente a forma de cálculo da Indenização de Estímulo Operacional, parcela destinada ao pagamento de serviço extraordinário e noturno, consoante estabelecido nas Leis Complementares Estaduais 137/95 e 254/03. Em consequência, quanto a esse aspecto, mostram-se ilegais, porquanto contrariam a lei. 3. Os decretos em referência foram além das leis que regulamentaram, ao autorizarem que o administrador não mais pagasse ao servidor público o valor correspondente às horas extras efetivamente trabalhadas, de acordo com a forma de cálculo fixada pela lei, permitindo, assim, o enriquecimento sem causa do Estado. Além disso, permitiram que o servidor público percebesse menos pela mesma quantidade de horas extras prestadas. Assim, violaram o princípio da irredutibilidade de vencimentos, preconizado pelo art. 37, inc. XV, da Constituição Federal. 4. Recurso ordinário provido. (STJ - RMS nº 22.828/SC – 5ª Turma - Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima - DJe de 19.05.2008)
No âmbito militar federal, podemos citar como exemplo da aplicação do citado inciso IV do art. 84, o Decreto nº 4.307/2002 que regulamentou a MP nº 2.215-10/2001 (Remuneração dos Militares das Forças Armadas). Esse regulamento, editado na forma de decreto, não poderá extrapolar ou restringir as normas vinculantes previstas na MP sob pena de ilegalidade.
Vejamos as seguintes decisões colegiadas do TRF1 e TRF3 sobre a impossibilidade de o regulamento extrapolar a lei:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. GRATIFICAÇÃO CONHECIDA COMO PRO-LABORE DE ÊXITO. EXTENSÃO POR PORTARIA MINISTERIAL DA VANTAGEM A SERVIDORES OUTROS QUE NÃO OS EXPRESSAMENTE NOMINADOS NA LEI Nº 7.711/88. I. Uma vez que a sentença apreciou os fatos e fundamentou o decisum, não há falar-se em sua nulidade. II. O regulamento, por óbvia questão de hierarquia das normas, não pode ir além da autorização legislativa. III. A administração pode e deve anular seus próprios atos eivados de ilegalidade, consoante o pacífico magistério doutrinário e jurisprudencial. IV. Não cabe ao Poder Judiciário aumentar vencimentos de servidores, ao fundamento de isonomia, até porque carente de função legislativa (q.v. Súmula nº 339, do Eg. STF). V. Preliminares rejeitadas e negado provimento ao apelo. (TRF1 – AMS nº 9601451412/DF – 2ª Turma – Relator Desembargador Federal Carlos Fernando Mathias - DJ de 11.12.1997)
DIREITO ADMINISTRATIVO - RESOLUÇÃO CONFEA - INDICAÇÃO DE REPRESENTANTE - DISTINÇÃO ENTRE FACULDADE E UNIVERSIDADE PREVISTA EM RESOLUÇÃO - AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL - LEI 5.164/66 - HIERARQUIA DAS NORMAS. A alínea "b" do artigo 37 da Lei 5.194/66 previa que os conselhos regionais seriam constituídos de brasileiros diplomados em curso superior, legalmente habilitados, obedecida em sua composição, a permanência de um representante de cada escola ou faculdade de engenharia, arquitetura e agronomia com sede na região. Havendo clara distinção na lei entre estabelecimento isolado (faculdade) e universidade, não poderia o Conselho, ao editar ato normativo, desprezá-la para equipará-los. Dentro do ordenamento jurídico deve-se preservar a hierarquia entre as normas visando garantir a lógica, a ordem e a segurança do sistema. As normas podem ser classificadas hierarquicamente conforme sua maior ou menor intensidade criadora do direito, conformando-se as normas inferiores às normas de categoria superior. A Resolução do CONFEA que traz restrições não previstas em lei, não pode prevalecer ao extrapolar os limites próprios da natureza do regulamento, exorbitando a sua função de caráter complementar à lei, voltada à sua pronta e fiel execução. (TRF3 – AC nº 0662684-48.1985.4.03.6100 – 6ª Turma – DJU de 20.04.2007)
O Poder Executivo não poderá editar regulamentos autônomos7 ou independentes, mas somente regulamentos8 de execução da lei, ou seja, objetivando explicitar o modo de execução da lei a ser regulamentada, nos termos constitucionais, excetuando-se o previsto no inciso VI do art. 84 da CF/88.
Os Ministros de Estado, também, possuem a competência para expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos, conforme disposição contida no inciso II do art. 87 da CF/88:
Art. 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.
Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:
I - exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República;
II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;
III - apresentar ao Presidente da República relatório anual de sua gestão no Ministério;
IV - praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República.
Essas instruções editadas pelos Ministros, obviamente, não poderão contrariar ou extrapolar (ir além do conteúdo da lei ou se afastar dos limites que essa lhe traçou) as regras contidas nas leis, decretos e regulamentos, sob pena de ferimento do princípio da hierarquia das normas.
Assim, quando as instruções regulamentares forem de lavra de Ministro de Estado, qualificar-se-ão como regulamentos executivos; e por consequência estarão subordinadas aos limites jurídicos definidos na regra legal superior a cuja implementação elas se destinam. Em suma, as instruções não podem transgredir a lei, o decreto ou o regulamento, seja para exigir o que uma daquelas não exigiu, seja para estabelecer distinções onde àqueles não distinguiram.
Tal regra jurídica vinculante aos Ministros de Estado aplica-se aos Comandantes das Forças Armadas e às autoridades militares subordinadas.
O inciso VI do art. 84 trata do decreto autônomo, estando assim conceituado no Manual de Redação da Presidência da República:
Com a Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, introduziu-se no ordenamento pátrio ato normativo conhecido doutrinariamente como decreto autônomo, i. é., decreto que decorre diretamente da Constituição, possuindo efeitos análogos ao de uma lei ordinária. Tal espécie normativa, contudo, limita-se às hipóteses de organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos, e de extinção de funções ou cargos públicos, quando vago (art. 84, VI, da Constituição).
O parágrafo único do art. 84 da CF/88 permite que o Presidente da República delegue os poderes que lhe são conferidos no inciso VI aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União:
Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.
Um exemplo de delegação do Presidente da República para o Ministro de Estado é o Decreto nº 6.806/2009, conforme se observa no seu art. 1º:
Art.1º. É delegada competência ao Ministro de Estado da Defesa, vedada a subdelegação, para aprovar o Regulamento de Continências, Honras, Sinais de Respeito e Cerimonial Militar das Forças Armadas.
O decreto autônomo surge a partir do texto constitucional, isto é, não tem por base a lei e nem regulamenta a lei. É um ato primário, porque decorre diretamente da Constituição, inovando o ordenamento jurídico, criando situações jurídicas, direitos e obrigações, todavia, ressalte-se, há limites constitucionais para sua utilização, conforme disposições contidas nas alíneas a e b do inciso VI do art. 84 da CF/88.
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1Manual de redação da Presidência da República - Gilmar Ferreira Mendes e Nestor José Forster Júnior. – 2. ed. rev. e atual. – Brasília: Presidência da República, 2002.
2Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo. 16ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1988. p. 155.
3BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direto Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2002. p. 305.
4Na prática são sinônimos, pois os decretos expedidos com base no inciso IV do art. 84 da CF/88 costumam explicitar que estão regulamentando determinada lei.
5A palavra está destacada em itálico para destacar que o termo lei na CF/88 tem aspecto genérico, podendo ser, por exemplo, lei complementar, lei ordinária, etc.
6Ressalte-se que não há que se falar em inconstitucionalidade, mas sim ilegalidade, conforme já analisado pelo STF nos autos da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 561/DF, julgada em 23.08.1995 pelo Plenário do Supremo. Eis parte da ementa: "Se a interpretação administrativa da lei divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o Decreto impugnado pretendeu regulamentar, quer porque se tenha projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer porque tenha investido contra legem, a questão posta em análise caracterizará típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar a utilização do mecanismo processual de fiscalização normativa abstrata."
7Com a exceção, obviamente, da previsão contida no inciso VI do art. 84 da CF/88.
8APELAÇÃO CRIMINAL. RESTITUIÇÃO DE COISA APREENDIDA. ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO. INTEGRANTE DO CORPO DE BOMBEIROS MILITAR. DECISÃO QUE INDEFERE PEDIDO DO REQUERENTE. RECURSO DA DEFESA. COMPETÊNCIA PARA REGISTRO DA ARMA. COMANDO DO EXÉRCITO. SISTEMA DE GERENCIAMENTO MILITAR DE ARMAS - SIGMA. HIERARQUIA DAS NORMAS. LEI Nº 10.826/03. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. O Decreto regulamentar se vincula à disposição legal, sendo, portanto, norma de hierarquia inferior, não podendo inovar legalmente. 2. In casu, não obstante norma constante no artigo 1º, § 1º, inciso III, do Decreto nº 5.123/2004, que estabelece o registro das armas de fogo dos integrantes do Corpo de Bombeiros Militar no SINARM, a competência para tal registro é do Comando do Exército, responsável pelo Sistema de Gerenciamento Militar de Armas - SIGMA, nos termos do artigo 3º, parágrafo único, da Lei nº 10.826/2003. 3. Comprovado nos autos o porte e o registro da arma de fogo de uso restrito, tanto no Corpo de Bombeiros Militar quanto no Comando do Exército, por meio do SIGMA, e não existindo mais interesse na apreensão da arma de fogo nos autos do processo ao qual está vinculada, não há óbice legal à restituição. 4. Recurso da Defesa conhecido e provido para reformar a sentença e determinar a restituição ao apelante da arma objeto dos autos. (TJDFT – AC nº 20130410008845 – 2ª Turma Criminal – Relator Desembargador Roberval Casemiro Belinati – DJE de 19.06.2013)